19 junho 2006

Os Cús de Judas .....

http://www.madragoafilmes.com
Fotograma: Non ou a Vã Glória de Mandar, 1990; Manoel de Oliveira
Cannes 1990 [selecção oficial fora de competição - homenagem especial do júri - prémio FIPRESCI]

"(...) Esperavas-me, Sofia, e nunca houve entre nós quaisquer palavras, porque tu entendias a minha angústia de homem, a minha angústia carregada de ódio de homem só, a indignação que a minha cobardia provocava em mim, a minha submissa aceitação da violência e da guerra que os senhores de Lisboa me impuseram, entendias as minhas desesperadas carícias e a ternura medrosa que te dava, e os teus braços desciam-me lentamente ao longo das costas, dem zabga nem sarcasmo, subiam e desciam lentamente ao longo do suor gelado dos meus flancos, apertavam-me devagar a cabeça contra o teu ombro redondo, e eu tinha a certeza, Sofia, que sorrias no escuro o calado e misterioso riso das mulheres quando os homens se tornam de súbito meninos, e se lhes entregam como filhos desprotegidos e frágeis, exaustos de lutarem dentro de si mesmos contra o que de si mesmos os revolta.(...)"

Lobo Antunes, António; Os Cus de Judas, 9ª edição, D. Quixote

Hoje deixo a seally-season para mais tarde e aproveito o fim da leitura do livro que dá título ao texto de hoje para abordar um tema muito delicado. O Estado Novo e a Guerra Colonial.

Lobo Antunes, é deslumbrante neste livro e deixou-me em vários momentos bastante arrepiado. Não da guerra porque a vi depois da Revolução de Abril em Angola, com os meus 10 anos de idade, mas pelo trauma que cria por quem lá passa...

Eu, não vivendo a guerra colonial de forma directa, na mata como os soldados portugueses viveram, ainda hoje tenho medo dos foguetes, do macarrão e do frigorífico vazio. O primeiro associo-o ao silvo das balas, dos morteiros de noite e de dia quando ocorreram as denominadas guerras de cidade entre os três partidos políticos. O segundo, associo-o à fome. Para quem tem 10 anos, a fome pode passar por se repetir, em vários dias consecutivos, um mesmo elemento e com sabor a ranço........

Passados todos estes anos ainda persiste, em alguma memória colectiva portuguesa este assunto. Tenho o Amigo Pedro, cujo Pai morreu na Guiné em combate e, para aquele, a Guerra Colonial é o que Lobo Antunes descreve muito bem. A minha avó mandou um filho para a Guiné e veio 'inteiro', sem traumas....

Eu, nasci em Angola e tive um amigo de rua cujo Pai, fazendeiro, fez das piores barbaridades que se pode imaginar aos seus trabalhadores, e que Lobo Antunes descreve correctamente.

Eu, nasci em Angola, fui pioneiro da UNITA e, num momento menos bom na minha cidade do Dondo, quando estávamos instalados no Hotel Marginal - pai, mãe e irmão - por causa da guerrilha urbana entre MPLA e UNITA, um grupo de tresloucados manda-nos colocar em fila e a minha mãe fica aflita e diz, como qualquer galinha a proteger os seus pintos, de imediato:

- não façam mal aos meus filhos que eles nasceram cá!.....

e um deles responde:

- não fazemos não, porque GOSTAMOS muito deles!!!

Que alívio a minha mãe sentiu!!!! E eu nos meus 10 anos, assistindo a um filme real parecido com os que via em Cambambe.

Que situação estranha a minha... uma verdade absoluta que Lobo Antunes relata, os traumas, as loucuras que as pessoas faziam....e a minha verdade que é, também, absoluta !!!!

Que situação estranha a minha?

Este é o meu pequeno Ponto(s) de Vista de hoje!

7 Comments:

Anonymous Anónimo said...

Que situação essa! Acredito que ainda hoje apanhes alguns sustos, mas enfim...já passou :).

Abraço e continuação de 1 bom trabalho aqui no blog

segunda-feira, junho 19, 2006  
Blogger Alexandra said...

Olá RPM,

falaste-me de facto, que estavas a ler um livro de António Lobo Antunes. Pelo que expuseste desta sua obra, ficará na calha para ler (só li memória de elefante).

Mexeu contigo... ele é muito realista a escrever... imagino as sensações que tiveste... há coisas que ainda estão muito marcadas em ti e outra coisa não seria de esperar!!!

Como coisas tão simples podem desencadear "medos" tão intensos...infelizmente é assim, para ti e para aqueles que tiveram que viver o que tu vivênciaste.

Não acho uma situação estranha, acho simplesmente que leste algo que te levou a outros tempos, em que as vivências foram marcantes. Desde que não te deixes influenciar por isso, tudo voltará à normalidade :)

Gostei muito do teu ponto de vista, tanto da tua parte, como do excerto que escolheste.

Fica bem!

Beijinhos

segunda-feira, junho 19, 2006  
Blogger Maria P. said...

Que excelente ponto de vista, mais um, para não variar.

Beijinho

segunda-feira, junho 19, 2006  
Blogger Andr3 said...

Eu dou-me por contente de não ter passado por isso, deve ser bastante dificil para quem não pode dizer o mmo.
Deve ser por esse tipo de situações que muita gente dá mais valor á vida!
Deve ter sido realmente aflitivo essa altura...e há muitas pessoas que tb o possam contar; mas nada como lembrar, aconteceu verdadeiramente e é real. É só o meu ponto de vista!
Um Abraço, Até Depois

terça-feira, junho 20, 2006  
Blogger Al Cardoso said...

Que interessante fizes-te lembrar os tempos de Angola, embora sem ter la nascido, foi ai que de crianca me fiz homem.
Ai tantas vezes passei no Dondo que de mau so tinha esse calor abafado.

Um abraco da Beira (a Alta)

terça-feira, junho 20, 2006  
Blogger Aladdin Sane said...

Li "Os Cus de Judas" há três semanas. Se puderes lê desde já "Memória de Elefante". São duas belas obras.

quarta-feira, junho 21, 2006  
Anonymous Anónimo said...

Que saudades deves ter de Angola, não é?
Africa marca.
Então quem nasceu lá, nem se fala.

quarta-feira, junho 21, 2006  

Enviar um comentário

<< Home